Milhões de brasileiros buscam a segurança de um plano de saúde para si e suas famílias. Contudo, o que muitos não sabem é que nem toda opção no mercado oferece a mesma proteção. Especialmente os planos coletivos por adesão, que à primeira vista parecem uma vantagem econômica, podem se revelar uma verdadeira armadilha.
Nos últimos anos, consumidores têm sido surpreendidos com a “pegadinha” dos planos de saúde: a oferta de “falsos coletivos” disfarçados de planos individuais.
Esses contratos, apresentados como alternativas mais baratas, escondem cláusulas leoninas, reajustes descontrolados e rescisões unilaterais. Diferentemente dos planos individuais — cada vez mais raros, justamente por serem mais regulados — os coletivos não possuem limites máximos de reajuste impostos pela ANS. A consequência é a proliferação de contratos com aumentos de até 120% em um ano, sem justificativas transparentes ou acesso aos cálculos utilizados, prejudicando principalmente os idosos.
Entendendo os Tipos de Planos de Saúde: Individual, Familiar e Coletivo
Para entender a dinâmica dos planos de saúde, é essencial conhecer suas classificações. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio de suas Resoluções Normativas, define as modalidades de contratação.
Basicamente, os planos podem ser:
Individuais ou Familiares: Contratados diretamente por uma pessoa física para si ou para sua família. Historicamente, essa modalidade oferecia maior estabilidade e proteção regulatória.
Coletivos Empresariais: Oferecidos por empresas a seus funcionários e dependentes. A adesão geralmente é automática e vinculada à relação de trabalho.
Coletivos por Adesão: Destinados a grupos de pessoas ligadas a entidades de classe, sindicatos, associações profissionais, entre outros. Essa modalidade é o foco da nossa discussão, pois é onde as maiores "pegadinhas" costumam estar.
A principal diferença entre eles não está apenas na forma de contratação, mas nas regras que os regem, especialmente no que diz respeito aos reajustes anuais e às possibilidades de rescisão.
A "Pegadinha" dos Planos Coletivos por Adesão: Quando o Barato Sai Caro
A sedução dos planos coletivos por adesão muitas vezes reside no seu preço inicial, que costuma ser significativamente mais baixo do que os planos individuais e familiares. Essa diferença, que pode chegar a 30% ou 40%, atrai muitos consumidores desavisados. Contudo, essa aparente economia pode se transformar em um pesadelo financeiro e de saúde a médio e longo prazo.
O Contrato de Adesão: Você Realmente Tem Escolha?
A grande maioria dos planos de saúde, independentemente do tipo, é formalizada por contratos de adesão. Isso significa que as cláusulas e condições são pré-estabelecidas pela operadora ou administradora do benefício, e o consumidor simplesmente "aceita" ou "não aceita" o pacote. Não há negociação.
Essa característica é ainda mais crítica nos planos coletivos, onde a hipossuficiência do consumidor é latente. Ele não tem liberdade para discutir termos, modificar coberturas ou contestar valores, o que gera um desequilíbrio enorme na relação contratual. O direito fundamental à informação, garantido pelo Código de Defesa do Consumidor, muitas vezes é negligenciado, deixando o beneficiário no escuro sobre as verdadeiras regras do jogo.
Os "Falsos Coletivos": Uma Realidade Perigosa para Milhões de Brasileiros
Dentro da modalidade coletiva, surgiu uma prática ainda mais questionável: os chamados "falsos coletivos". Essa artimanha consiste na oferta de contratos formalmente coletivos, que na prática se destinam a grupos pequenos ou a indivíduos, ou a entidades que não se enquadram nos requisitos da Resolução Normativa 195/2009 da ANS.
Na prática, são planos individuais disfarçados de coletivos para que as operadoras possam escapar de certas regulamentações mais protetivas. A estratégia é clara:
1) Evitar a regulamentação dos reajustes: Ao contrário dos planos individuais, que têm seu reajuste anual limitado pela ANS, os planos coletivos seguem regras de livre negociação, permitindo aumentos bem mais agressivos.
2) Facilitar a rescisão unilateral: Embora existam regras, a rescisão de contratos coletivos é mais flexível para as operadoras em comparação com os individuais, onde é vedada a rescisão unilateral sem justa causa.
As consequências para os consumidores são graves: reajustes astronômicos (muitas vezes em progressão geométrica, muito acima da inflação ou dos aumentos de planos individuais) e a rescisão inesperada do contrato, que pode deixar milhares de pessoas, muitas delas idosas ou com doenças crônicas, desassistidas em momentos de maior necessidade.
A Cláusula da Sinistralidade: Um Instrumento de Pressão para Idosos
Um dos pontos mais sensíveis e obscuros nos planos coletivos por adesão é a aplicação do reajuste por sinistralidade. Diferente do reajuste por faixa etária (que acontece ao completar certas idades), o reajuste por sinistralidade é justificado pelas operadoras como uma forma de compensar o "aumento de custos hospitalares" ou "utilização excessiva" do plano pelo grupo.
O modelo de reajuste por sinistralidade tem sido utilizado, em especial, como verdadeira “cláusula barreira”, pressionando idosos e pacientes de alto custo a se desligarem do plano. Isso ocorre porque o cálculo desse tipo de reajuste depende exclusivamente de dados internos da operadora — sem qualquer verificação externa ou possibilidade real de contestação por parte do consumidor. Como o Superior Tribunal de Justiça já apontou (REsp 2.065.976/SP) é abusivo reajustar sem demonstrar, com dados objetivos, o alegado desequilíbrio contratual.
Essa prática é ainda mais perversa quando aplicada a idosos. Muitas vezes, esses aumentos desproporcionais, sem justificativa clara e em percentuais exorbitantes, têm o claro objetivo de pressionar o desligamento dos beneficiários mais velhos do plano. Para as operadoras, idosos tendem a demandar mais serviços e, consequentemente, geram mais custos. Transformar o plano em algo financeiramente inviável é uma forma de "cláusula barreira" para excluí-los, visando maximizar o lucro.
Reajustes Abusivos e a Omissão da Informação: Uma Violação Constante
A suposta "livre negociação" dos reajustes anuais em planos coletivos é, na prática, uma ficção. O consumidor final, que arca com as mensalidades, raramente é informado de forma clara e antecipada sobre os percentuais de reajuste e, muito menos, sobre os motivos que levaram a esses aumentos.
A própria ANS, em seu site, informa que as operadoras são obrigadas a disponibilizar a memória de cálculo do reajuste e a metodologia utilizada à pessoa jurídica contratante com, no mínimo, 30 dias de antecedência. Além disso, o percentual aplicado deve constar no boleto de pagamento.
No entanto, a realidade é outra. Frequentemente, esses dados não são fornecidos, e o consumidor é pego de surpresa com aumentos que chegam em suas faturas sem qualquer justificativa. Um reajuste de até 120% em um ano, por exemplo, contrasta bruscamente com o índice máximo autorizado pela ANS para planos individuais (que foi de 9,63%) e o índice oficial da inflação (4,62%) no mesmo período, o que pode representar um aumento até 13 vezes maior que um plano individual e quase 22 vezes maior que o índice da inflação.
Essa conduta viola diversos preceitos legais, como o direito à informação (Art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor e Art. 16, XI, da Lei 9.656/98) e as próprias Resoluções Normativas da ANS (como a RN nº 565/2022). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou, reiterando que a aplicação do reajuste por sinistralidade só é válida se a operadora comprovar, de forma pormenorizada, o aumento da sinistralidade, sob pena de a cobrança ser considerada abusiva e configurar enriquecimento ilícito.
Onde Está a Regulamentação? A Negligência Legislativa e a Atuação da ANS
Diante de um cenário tão desfavorável para o consumidor, a questão que se impõe é: qual o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da legislação?
A ANS: Guardiã do Consumidor ou do Mercado?
A ANS é a agência reguladora do setor de planos de saúde no Brasil, com a missão de defender o interesse público. No entanto, sua atuação, especialmente no que tange aos planos coletivos, tem sido alvo de críticas. Muitos especialistas e consumidores argumentam que a Agência, ao invés de priorizar a defesa do beneficiário, adota uma visão sistêmica que busca equilibrar os interesses das operadoras e administradoras de benefícios, mesmo que isso custe a proteção do elo mais fraco da cadeia.
A atuação da ANS, por sua vez, tem se mostrado tímida. Mesmo sabendo que os planos coletivos concentram a maior parte das fraudes e litígios, a agência mantém uma postura que prioriza a “saúde financeira do setor” em detrimento da saúde física e financeira dos consumidores.
O Lobby das Operadoras e Seus Impactos na Sua Saúde
É inegável que o setor de saúde suplementar possui um forte poder econômico e político. Esse poder se traduz em um lobby que, segundo críticos, influencia as decisões regulatórias, fazendo com que os direitos dos beneficiários dos planos coletivos fiquem em segundo plano.
A consequência direta é a criação de um ambiente que permite às operadoras otimizar seus lucros, muitas vezes à custa da desinformação e da vulnerabilidade do consumidor.
O Desaparecimento dos Planos Individuais: Uma Questão de Interesse das Operadoras
Não é por acaso que os planos individuais e familiares estão em franco desaparecimento do mercado. Essa é uma estratégia deliberada das operadoras. Por que oferecer um produto com regulamentação mais rígida e margens de lucro menores (como os planos individuais, com reajustes limitados pela ANS) se é possível empurrar um "plano coletivo" com muito mais liberdade para reajustes e rescisões?
A falta de oferta de planos individuais limita a escolha do consumidor e o empurra, muitas vezes, para a "armadilha" dos planos coletivos, onde as regras são menos transparentes e a proteção é menor. É um ciclo vicioso que beneficia as empresas em detrimento da segurança e saúde dos clientes.
A Busca por Justiça: Por Que o Judiciário Virou a Última Esperança dos Consumidores
É preciso denunciar e conscientizar que os “falsos planos coletivos” são armadilhas contratuais disfarçadas de oportunidade.
Diante da atuação ineficaz da ANS e da fragilidade da legislação em proteger o consumidor nos planos coletivos, o Poder Judiciário tem se tornado a última esperança para muitos beneficiários. A judicialização de conflitos, como a contestação de reajustes abusivos e rescisões unilaterais, tem aumentado consideravelmente.
Em regra, a Justiça tem reconhecido a vulnerabilidade do consumidor e a abusividade de certas práticas das operadoras, concedendo ganho de causa à parte hipossuficiente. Isso demonstra que, mesmo com as falhas regulatórias, o arcabouço legal do Código de Defesa do Consumidor, aplicado pelo Judiciário, ainda se mostra uma ferramenta essencial para reequilibrar essas relações.
Hermes Rosa de Moraes é advogado com Pós Graduação em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito e sócio da Rosa Advocacia.