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NOTÍCIAS Quinta-feira, 05 de Junho de 2025, 07:22 - A | A

Quinta-feira, 05 de Junho de 2025, 07h:22 - A | A

ARTIGO

Quando o PAD - Processo Administrativo Disciplinar ignora a doença: A urgência de uma abordagem humanizada na Administração Pública

Em meu trabalho como advogado nessa seara do Direito Administrativo tenho visto diversos equívocos ocorrerem nos relatórios emitidos por comissões processantes nomeadas para atuar em um PAD – Processo Administrativo Disciplinar, em especial na recomendação para aplicação da penalidade de Demissão do servidor Público em situação de Dependência Química ou com Problema de Saúde Mental.

Para piorar a situação, não é raro que tais relatórios com flagrantes equívocos serem homologados pela autoridade estatal que determinou a instauração do PAD.

Depois de esgotados todos os recursos na esfera administrativa e diante da manutenção da decisão em demitir o servidor, não existe outra saída senão a de bater às portas do Poder Judiciário.

Pois bem, não se pode deixar de reconhecer que em nosso mundo atual um número cada vez maior de pessoas tem apresentado problemas físicos e psíquicos frente ao seu contexto social. Mesmo leigos, passamos a conviver com expressões como depressão, transtorno bipolar, dependência química, alcoolismo, anorexia, bulimia, esquizofrenia, assédio moral, assédio sexual, entre outros.

O fato é que o moderno conceito de saúde, intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, contempla não só o estado fisiológico do homem, mas também o seu estado interior, a higidez de seu estado anímico.

Ocorre que um servidor com problema de saúde relacionado aos temas acima descritos enfrenta não só o preconceito, mas também a falta de sensibilidade do seu empregador, no caso, do órgão estatal.

O servidor que está passando por uma Situação de Dependência Química ou com Problema de Saúde Mental tenderá a apresentar inúmeras faltas no serviço, contudo, em vez de reconhecerem a condição de adoecimento, isso é entendido pela administração pública como desídia, má vontade e preguiça.

Observe que o servidor com tais tipos de doença muitas vezes sequer consegue entregar um atestado médico, e muito menos passar pela pericia médica obrigatória, ocasionando o que a lei chama de “abandono de cargo” e “inassiduidade habitual” previstos no art. 132, II e III, da Lei 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União) e no art. 159, II e III da LC 04/90 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado de Mato Grosso).

Normalmente um olhar mais atento às provas produzidas no PAD demonstrarão que aqueles servidores estão doentes e que este é o real motivo e as circunstâncias que justificam suas faltas ao serviço.

Imperioso registrar que a penalidade de DEMISSÃO é a chamada penalidade máxima ao servidor público e ela trás um impacto devastador nessas circunstâncias, não apenas na vida do servidor e da sua família, mas também na sociedade, que perde um cidadão que poderia ser devidamente recuperado.  

Sobre o referido tema (Inassiduidade Habitual) o Prof. Mauro Roberto Gomes de Mattos nos ensina que se houver uma causa justificada o ilícito administrativo desaparece exatamente pela falta do animus especifico. [1]:  

Necessário esclarecer que tanto a doutrina quanto a jurisprudência entendem que para a caracterização tanto do “abandono de cargo” quanto da “Inassiduidade Habitual” (que gera a demissão do servidor) na conduta do servidor deve haver 02 (dois) requisitos, o requisito objetivo que é o enquadramento no diploma legal e o requisito subjetivo convencionado no entendimento jurisprudencial pelo nome de animus especifico.  

E na imensa maioria das vezes em que o servidor é demitido sob o argumento de “abandono de cargo” ou de “Inassiduidade Habitual” o que existe nos autos do PAD é somente o requisito objetivo, normalmente materializado em cópias das folhas de frequência com as faltas do servidor, porém, ausente a demonstração (necessária) do requisito subjetivo (animus).

A falta do requisito subjetivo (animus) do servidor para o não comparecimento ao serviço afasta o elemento constitutivo tanto do “abandono de cargo” quanto da “Inassiduidade Habitual”, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é remansosa e pacifica nesse sentido:[2]  

“EMENTA ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. DEMISSÃO. ABANDONO DE CARGO. ANIMUS ABANDONANDI. AUSÊNCIA. PEDIDO DE LICENÇA-MÉDICA FORMULADO. RECURSO PROVIDO. I - Não há como pechar de desidiosa a servidora que, submetida a permanente tratamento de saúde, tendo já obtido 33 (trinta e três) licenças para tratamento de saúde, pediu a prorrogação da última licença concedida. II - A existência de prévia postulação da prorrogação da licença-médica afasta a presença do animus abandonandi, requisito necessário à aplicação da pena de demissão por abandono de cargo. Recurso provido.” (grifo nosso)  

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR . ABANDONO DE CARGO. DEPENDÊNCIA QUÍMICA. DEFICIÊNCIA VOLITIVA COMPROVADA POR LAUDO PERICIAL. AUSÊNCIA DE ANIMUS ABANDONANDI EVIDENCIADA DEMISSÃO. DESCABIMENTO.

1. A jurisprudência desta Corte reconhece que para a tipificação da infração administrativa de abandono de cargo, punível com demissão, faz-se necessário investigar a intenção deliberada do servidor de abandonar o cargo . Precedentes.

2. In casu, não se visualiza o elemento indispensável à caracterização do abandono de cargo ou da inassiduidade, porquanto comprovado por perícia médica a incapacidade do servidor determinar-se diante de seu estado clínico de dependência de drogas, merecendo destaque, ainda, a afirmação acerca do seu retardamento de entender o caráter ilícito de sua conduta.

3 . Nesse contexto, em que pese o número excessivo de faltas do servidor, é possível constatar que não foi o descaso com o serviço público que as motivou, mas a deficiência volitiva decorrente do seu estado de saúde, porquanto verdadeiro dependente químico, o que definitivamente rechaça a tese de falta de justificativa das ausências.

4. Em hipótese análoga, esta Corte manifestou a compreensão de que servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vítima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. (RMS 18.017/SP), Rel . Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 2/5/2006).

5. Agravo interno não provido. (grifo nosso)  

Resta claro então o relevante trabalho que deve ser desempenhado pela comissão processante, pois a ela cabe não só analisar os argumentos e provas juntadas pelo servidor durante o PAD, mas procurar descobrir se realmente aquele servidor faltoso deve ter a sua responsabilidade disciplinar afastada em razão de doença física ou mental, pois nesse caso, não cabe à Administração puni-lo, e, sim, dispensar-lhe um tratamento digno por intermédio do serviço médico e de recursos humanos do órgão.

Havendo possibilidade de tratamento da doença, o servidor deve ser afastado até o seu total restabelecimento e reintegração às suas funções ou mesmo, se for o caso, aposentado por invalidez.

Importante trazer à luz que a inobservância por parte da Administração de seu dever de oferecer apoio e tratamento adequado pode, em si, configurar uma omissão que agrava a situação do servidor, tornando a penalidade ainda mais desarrazoada.

Em síntese, é crucial que a Administração Pública, e em especial as comissões disciplinares, adotem uma abordagem mais atenta e humanizada diante de casos que envolvem a saúde do servidor.

Distinguir uma condição de doença da mera desídia, má vontade ou preguiça é um dever que se alinha aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Em situações tão delicadas, onde a carreira e a vida de um indivíduo estão em jogo, o conhecimento aprofundado das normas e a correta aplicação do direito podem ser determinantes.

Se você é servidor público em situação semelhante ou atua em comissão disciplinar e se deparou com esse tipo de caso, é fundamental buscar orientação especializada para assegurar uma condução justa e legal do PAD.

Buscar o devido amparo legal e profissional especializado nestes momentos é uma medida mais que prudente para assegurar que os direitos do servidor público sejam plenamente resguardados e que a justiça seja feita.

Hermes Rosa de Moraes é advogado com Pós Graduação em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito, com atuação destacada na defesa de servidores públicos em Processos Administrativos Disciplinares. É sócio da Rosa Advocacia.

 

[1] “O dever de assiduidade consiste em o servidor comparecer continuamente ao serviço servindo bem durante as horas de trabalho que lhe são impostas. Da violação deste dever nasce a ausência ilegítima ou falta de assiduidade. Todavia, se houver causa justificada, desaparece o presente ilícito administrativo, visto que fica afastado o animus especifico, que é o elemento constitutivo da presente infração disciplinar.” Lei nº 8.112/90 interpretada / Mauro Roberto Gomes de Mattos. Rio de Janeiro : América Jurídica, 2006 – 2ª edição. (pag;743)   [2] STJ - RECURSO ORDINÁRIO EM MS Nº 13.108 - SP (2001/0056070-8) - RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER - STJ - AgInt nos EDcl no RMS: 57202 MS 2018/0088411-9, Relator.: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 10/05/2021, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/05/2021