Em meu trabalho como advogado nessa seara do Direito Administrativo tenho visto diversos equívocos ocorrerem nos relatórios emitidos por comissões processantes nomeadas para atuar em um PAD – Processo Administrativo Disciplinar, em especial na recomendação para aplicação da penalidade de Demissão do servidor Público em situação de Dependência Química ou com Problema de Saúde Mental.
Para piorar a situação, não é raro que tais relatórios com flagrantes equívocos serem homologados pela autoridade estatal que determinou a instauração do PAD.
Depois de esgotados todos os recursos na esfera administrativa e diante da manutenção da decisão em demitir o servidor, não existe outra saída senão a de bater às portas do Poder Judiciário.
Pois bem, não se pode deixar de reconhecer que em nosso mundo atual um número cada vez maior de pessoas tem apresentado problemas físicos e psíquicos frente ao seu contexto social. Mesmo leigos, passamos a conviver com expressões como depressão, transtorno bipolar, dependência química, alcoolismo, anorexia, bulimia, esquizofrenia, assédio moral, assédio sexual, entre outros.
O fato é que o moderno conceito de saúde, intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, contempla não só o estado fisiológico do homem, mas também o seu estado interior, a higidez de seu estado anímico.
Ocorre que um servidor com problema de saúde relacionado aos temas acima descritos enfrenta não só o preconceito, mas também a falta de sensibilidade do seu empregador, no caso, do órgão estatal.
O servidor que está passando por uma Situação de Dependência Química ou com Problema de Saúde Mental tenderá a apresentar inúmeras faltas no serviço, contudo, em vez de reconhecerem a condição de adoecimento, isso é entendido pela administração pública como desídia, má vontade e preguiça.
Observe que o servidor com tais tipos de doença muitas vezes sequer consegue entregar um atestado médico, e muito menos passar pela pericia médica obrigatória, ocasionando o que a lei chama de “abandono de cargo” e “inassiduidade habitual” previstos no art. 132, II e III, da Lei 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União) e no art. 159, II e III da LC 04/90 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado de Mato Grosso).
Normalmente um olhar mais atento às provas produzidas no PAD demonstrarão que aqueles servidores estão doentes e que este é o real motivo e as circunstâncias que justificam suas faltas ao serviço.
Imperioso registrar que a penalidade de DEMISSÃO é a chamada penalidade máxima ao servidor público e ela trás um impacto devastador nessas circunstâncias, não apenas na vida do servidor e da sua família, mas também na sociedade, que perde um cidadão que poderia ser devidamente recuperado.
Sobre o referido tema (Inassiduidade Habitual) o Prof. Mauro Roberto Gomes de Mattos nos ensina que se houver uma causa justificada o ilícito administrativo desaparece exatamente pela falta do animus especifico. [1]:
Necessário esclarecer que tanto a doutrina quanto a jurisprudência entendem que para a caracterização tanto do “abandono de cargo” quanto da “Inassiduidade Habitual” (que gera a demissão do servidor) na conduta do servidor deve haver 02 (dois) requisitos, o requisito objetivo que é o enquadramento no diploma legal e o requisito subjetivo convencionado no entendimento jurisprudencial pelo nome de animus especifico.
E na imensa maioria das vezes em que o servidor é demitido sob o argumento de “abandono de cargo” ou de “Inassiduidade Habitual” o que existe nos autos do PAD é somente o requisito objetivo, normalmente materializado em cópias das folhas de frequência com as faltas do servidor, porém, ausente a demonstração (necessária) do requisito subjetivo (animus).
A falta do requisito subjetivo (animus) do servidor para o não comparecimento ao serviço afasta o elemento constitutivo tanto do “abandono de cargo” quanto da “Inassiduidade Habitual”, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é remansosa e pacifica nesse sentido:[2]
“EMENTA ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. DEMISSÃO. ABANDONO DE CARGO. ANIMUS ABANDONANDI. AUSÊNCIA. PEDIDO DE LICENÇA-MÉDICA FORMULADO. RECURSO PROVIDO. I - Não há como pechar de desidiosa a servidora que, submetida a permanente tratamento de saúde, tendo já obtido 33 (trinta e três) licenças para tratamento de saúde, pediu a prorrogação da última licença concedida. II - A existência de prévia postulação da prorrogação da licença-médica afasta a presença do animus abandonandi, requisito necessário à aplicação da pena de demissão por abandono de cargo. Recurso provido.” (grifo nosso)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR . ABANDONO DE CARGO. DEPENDÊNCIA QUÍMICA. DEFICIÊNCIA VOLITIVA COMPROVADA POR LAUDO PERICIAL. AUSÊNCIA DE ANIMUS ABANDONANDI EVIDENCIADA DEMISSÃO. DESCABIMENTO.
1. A jurisprudência desta Corte reconhece que para a tipificação da infração administrativa de abandono de cargo, punível com demissão, faz-se necessário investigar a intenção deliberada do servidor de abandonar o cargo . Precedentes.
2. In casu, não se visualiza o elemento indispensável à caracterização do abandono de cargo ou da inassiduidade, porquanto comprovado por perícia médica a incapacidade do servidor determinar-se diante de seu estado clínico de dependência de drogas, merecendo destaque, ainda, a afirmação acerca do seu retardamento de entender o caráter ilícito de sua conduta.
3 . Nesse contexto, em que pese o número excessivo de faltas do servidor, é possível constatar que não foi o descaso com o serviço público que as motivou, mas a deficiência volitiva decorrente do seu estado de saúde, porquanto verdadeiro dependente químico, o que definitivamente rechaça a tese de falta de justificativa das ausências.
4. Em hipótese análoga, esta Corte manifestou a compreensão de que servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vítima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. (RMS 18.017/SP), Rel . Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 2/5/2006).
5. Agravo interno não provido. (grifo nosso)
Resta claro então o relevante trabalho que deve ser desempenhado pela comissão processante, pois a ela cabe não só analisar os argumentos e provas juntadas pelo servidor durante o PAD, mas procurar descobrir se realmente aquele servidor faltoso deve ter a sua responsabilidade disciplinar afastada em razão de doença física ou mental, pois nesse caso, não cabe à Administração puni-lo, e, sim, dispensar-lhe um tratamento digno por intermédio do serviço médico e de recursos humanos do órgão.
Havendo possibilidade de tratamento da doença, o servidor deve ser afastado até o seu total restabelecimento e reintegração às suas funções ou mesmo, se for o caso, aposentado por invalidez.
Importante trazer à luz que a inobservância por parte da Administração de seu dever de oferecer apoio e tratamento adequado pode, em si, configurar uma omissão que agrava a situação do servidor, tornando a penalidade ainda mais desarrazoada.
Em síntese, é crucial que a Administração Pública, e em especial as comissões disciplinares, adotem uma abordagem mais atenta e humanizada diante de casos que envolvem a saúde do servidor.
Distinguir uma condição de doença da mera desídia, má vontade ou preguiça é um dever que se alinha aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade.
Em situações tão delicadas, onde a carreira e a vida de um indivíduo estão em jogo, o conhecimento aprofundado das normas e a correta aplicação do direito podem ser determinantes.
Se você é servidor público em situação semelhante ou atua em comissão disciplinar e se deparou com esse tipo de caso, é fundamental buscar orientação especializada para assegurar uma condução justa e legal do PAD.
Buscar o devido amparo legal e profissional especializado nestes momentos é uma medida mais que prudente para assegurar que os direitos do servidor público sejam plenamente resguardados e que a justiça seja feita.
Hermes Rosa de Moraes é advogado com Pós Graduação em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito, com atuação destacada na defesa de servidores públicos em Processos Administrativos Disciplinares. É sócio da Rosa Advocacia.
[1] “O dever de assiduidade consiste em o servidor comparecer continuamente ao serviço servindo bem durante as horas de trabalho que lhe são impostas. Da violação deste dever nasce a ausência ilegítima ou falta de assiduidade. Todavia, se houver causa justificada, desaparece o presente ilícito administrativo, visto que fica afastado o animus especifico, que é o elemento constitutivo da presente infração disciplinar.” Lei nº 8.112/90 interpretada / Mauro Roberto Gomes de Mattos. Rio de Janeiro : América Jurídica, 2006 – 2ª edição. (pag;743) [2] STJ - RECURSO ORDINÁRIO EM MS Nº 13.108 - SP (2001/0056070-8) - RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER - STJ - AgInt nos EDcl no RMS: 57202 MS 2018/0088411-9, Relator.: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 10/05/2021, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/05/2021